sábado, 6 de dezembro de 2008

APRESENTAÇÃO

Acerca de seis anos o vídeo artista Daniel Lisboa vem registrando o complexo cotidiano da capital baiana, Salvador. Através de sua câmera, Daniel captura sons e imagens dos cenários e personagens dessa trágica paisagem colonial.

A manifestação política que escore sobre o olhar atônito da população (U Olhu Du Povu); a voz de um detento que paira no éter, impulsionada pelas ondas de um celular clandestino (Freqüência Hanói), o céu manchado de pipas manipuladas por mãos negras (Um Milhão de Pequenos Raios), a mãe de santo embebedada tocando com maestria seu ritual (Dance Pop People), o Padre apodrecido em sua paróquia barroca (As Fitas Malditas do Padre Pinto), uma pinauna gigante rasgando a cidade como uma nota rebelde rock’n roll (Farpas Reluzentes).

Esse banco de imagens foi explorado, retrabalhado, improvisado e formatado das mais diversas formas: Através do vídeo tradicional, linear com inicio, meio e fim, exibido em cinemas, salas, home-pages e na TV; Transformado em loop’s, unidades cíclicas, sem fim e começo, fragmentadas em softwares de VJ e exibidas em festas e salões de arte; entregue nas mãos do público, possibilitando a interferência direta na obra dando novo sentido a mesma.

A busca por novas possibilidades no campo imagético é fundamental no trabalho de Lisboa. A constante inquietação diante da forma, do tempo e espaço vem norteando sua pesquisa. Depois de explorar o loop, o frame, o núcleo da célula audiovisual, Daniel percebeu que de fato o que resta é o infinito, o todo, o Material Bruto.

O Material Bruto é uma região ainda inexplorada, onde podemos encontrar elementos videograficos não experimentados em formatos tradicionais e nos espaços fílmicos disponíveis. A cena desprezada, o plano mal enquadrado, a seqüência deixada de lado por falta de espaço/tempo. Todos esses elementos ganham novo sentido dentro desse enfoque.

O estudo e a exibição dessas imagens é a oportunidade de observar o processo criativo, a confecção do produto, a integra, a crueza das relações, o não digerível, o bruto. Dessa forma contraria-se toda uma tendência moderna de aceleração das imagens, da dinâmica da edição, do ritmo e cortes, rompendo assim com as formas televisivas e cinematográficas pré-concebidas: o curta de 20 minutos, o longa de 2 horas, o clipe de 2 minutos, o programa de 26 ou 52 minutos.

Mostrar o que jamais seria visto. Imagens que se fossem aguardar os meios convencionais de produção, distribuição e exibição levariam alguns anos para serem apreciadas e muito provavelmente jamais contempladas em sua totalidade. O Material Bruto é um corte no caminho, um atalho, uma nova forma de contato entre público e obra.

O Material Bruto pode ser apresentado em grandes espaços como galerias e museus, utilizando diversos projetores e televisores como também pode ser apresentado em apenas um aparelho de TV. Provoca-se assim uma nova forma de fruição. Ou seja, a relação com a obra vai depender do grau de entrega/desejo/afeto de cada um. A pessoa pode passar olhar, sair, voltar, olhar mais uma vez, permanecer, voltar no dia seguinte ou somente apreender um simples frame. Tudo é valido nesse processo.


O conceito de materialismo bruto compreende não somente a forma de exibição, que pode ser das mais diversas, mas também a forma de captação dessas imagens. Diante mão, excluímos a possibilidade de qualquer contato com ilhas de edição. Isso não significa caminhar contra a modernidade, pelo contrario, o desejo é evoluir cada vez mais. Apenas considera-se que algumas das ferramentas tecnológicas estão desgastadas. Por isso propomos a edição no momento da filmagem. O corte seco é a liga do Material Bruto.

MATERIALISMO BRUTO



MATERIALISMO BRUTO: Uma instalação sensorial...uma sensação de teoria

O Materialismo Bruto questiona o autor da obra e as máquinas que os atravessam e os constituem, assim como atravessar as condições pré-individuais e supra-individuais da produção do real e da subjetividade na obra de arte contemporânea. Alguns pressupostos do nosso modo de realização devem ser melhores explicados. Primeiro ponto. Se essas imagens fossem aguardar os meios convencionais de produção, distribuição e exibição levariam alguns anos para serem apreciadas e muito provavelmente jamais contempladas em sua totalidade. Materialismo Bruto é um atalho para a relação entre o público e obra.

Decidimos transformar nossos métodos e nossas curiosidades com o cotidiano dos atores e manifestações sociais da cidade contribuindo e estabelecendo bases e noções a respeito do comportamento fluido da imagem digital e novos modos de transferência de dados, estabelecendo a conexão da produção com a recepção. Introduzimos um conceito fundamental para esse reenquadramento imagético-sonoro; o de Espaço Bruto, que diz respeito a formas de apropriação, visibilidade e indeterminação das poéticas contemporâneas. Convidamos o intéprete a participar ativamente na construção final do objeto artístico; séries permutáveis do corpo-máquina, móbiles citadinos, etc. Daí decorre três conclusões fundamentais: toda obra de arte é fluida porque comporta uma enesidade de interpretações; a "obra bruta" é um modelo teórico-prático para tentar compreender, interferir na arte contemporânea; e qualquer referencial teórico usado não deve revelar as características estéticas propostas, mas apenas um impulso para a fruição, e também um modo de gerar outros pressupostos ainda não evidenciados na proposta inicial.

Nesse sentido a intencionalidade dos realizadores é considerada um pressuposto da obra bruta. Várias formas de apresentação, várias obras num único espaço, deixando ao executante-expectador escolher uma das seqüências possíveis da sua obra-acaso. A própria expectativa da obra torna-se um ato de criação; a própria criação torna-se uma expectativa para a atualidade da arte.

Nesse sentido, autoria e co-autoria; público e privado; criador e expectador acabam se confundindo na indeterminação, na recombinação, na entropia, nos inúmeros rearranjos possíveis. Por esta razão, a obra bruta é geralmente associada ao conceito subjetivo de desordem. No entanto, o conceito de configurações equiprováveis envolve também as diferentes possibilidades de configurações energéticas entre o que vê e o que é visto; entre o que toca e o que é tocado.

O nosso sistema é um conjunto de partes interagentes que, conjuntamente, formam um todo unitário com determinado objetivo e efetuam determinada função microsocial. Esse modo pode ser definido como um conjunto de imagens e sons interdependentes que interagem com objetivos comuns formando um todo, e onde cada um dos elementos componentes comporta-se, por sua vez, como um sistema cujo resultado é maior do que o resultado que as unidades poderiam ter se funcionassem independentemente. Qualquer conjunto de partes unidas entre si pode ser considerado um sistema bruto, desde que as relações entre as partes e o comportamento do todo sejam o foco de atenção.

Dito isto, é preciso mostrar que o nosso sistema aberto de relação com a arte sempre sofrerá interações com o ambiente onde estão inseridos; quer seja numa galeria, na rua, numa praça, no deserto. Desta forma, a interação gera realimentações que podem ser positivas ou negativas, a depender do teor das imagens; muitas das quais já não temos a menor idéia do que se trata; criando assim uma auto regulação regenerativa, que por sua vez cria novas propriedades que podem ser benéficas ou maléficas para o todo independente das partes, no entanto, serão sempre provocativas e , mais que isso, necessárias, desejadas.

O materialismo bruto é para nós a possibilidade de um sistema dinâmico donde as coisas filmadas, as paisagens sonoras não devem ser vistas, ditas, distribuidas de forma petrificada, mas como coisas vivas, móveis, lutando uma contra a outra para recompor o espaço de sua existência. A noção de materialismo bruto diz respeito a uma modalidade de anti-narrativa que tenta perverter os padrões de consumo da arte. Um modo de concretizar a obra de arte no mimetismo de técnicas particulares, como por exemplo, o abandono das mediações através de editores de imagem. Trata-se de um ciclo de retroação que deve focalizar no arranjo do todo filmado e do receptor-criador, ou seja, nas relações entre as partes que se interconectam e interagem organica e esteticamente.

A dinâmica caótica desses materiais e videogramas fazem com que a produção e a transmissão de imagens que invadem o nosso cotidiano não sejam pré-concebidas, pré-editadas, ao contrário elas devem ser simplesmente o conjunto de imagens que afetam e são afetadas pelo receptor criando um corpo pleno de imagens e sons que penetram lentamente nos territórios de sociabilidade, permitindo pensar e repensar a construção do objeto artístico no momento de sua confecção. O recurso da observação objetiva é uma outra face de realidade: o espelho do criador é a própria identidade da obra: a aproximação de distâncias, um paralelismo de hábitos, um transformar constante, transportar incessante de matéria bruta e energia videográfica. Os elementos técnicos serão usados de três maneiras: como máquina de armazenar dados, como instrumento ativo na criação artística, e como instrumento ativo na geração de imagens, sons, etc.

É importante dizer ainda que o armazenamento de imagens e som, encaixados aleatoriamente nessas caixas comutadoras, transformando seu conteúdo a depender de quantas telas se queira exibir, ou de quantos toques se deseje - numa espécie de edição em tempo real - diz respeito também à semântica que associamos aos mesmos. Uma de nossas teses centrais é que a edição de dados empobrece o entendimento da obra de arte. Note-se ainda que não é possível colocar num computador as noções de infinito e de contínuo, apenas aproximações das mesmas; mas para a criação artística não vemos limites para a sua utilização. Daí que as inúmeras possibilidades de interação entre um contínuo de imagens e uma infinidade de sons podem e devem, quid facti, deformar o sentido espacial, ao incorporar o tempo como uma de suas dimensões atuantes. O materialismo bruto dessa forma extrapola o mero papel técnico das artes visuais englobando o papel experimental em seu território, acentuando a impressão da realidade pela apresentação das formas em pleno movimento. É justamente a filmabilidade da vida e a interatividade com seu duplo filmado que permite um novo paradigma visual para a atualidade. Ao pensar o espaço real de andanças de personagens da cidade, ou mesmo de situações distintas desses terrenos recriados por muitos olhares, estamos, em certo sentido, criando uma arquitetura hipermidiática, uma cidade labiríntica, uma estrutura polidimensional, uma circunvizinhança flexível e elástica para o nosso lugar de produção.

Nesse ponto de vista, a matéria-videograma bruta é o terreno da distensão, da dilatação, da explosão de espaços-tempos; potências redobradas cheias de movimentos; movimentos que passam entre os objetos ou partes; e exprime a duração e o todo. Elas fazem com que a duração, ao mudar de natureza, se divida nos objetos, e que os objetos, ao se aprofundarem, perdendo seus contornos, reunam-se na duração.

A parte mais importante do materialismo bruto é , portanto, o fato da obra de arte ter um código aberto. Um espectro de redução de toda a consciência interior do artista passando para as energias brutas exteriores, e vice-versa. Por esta razão, resumimos assim o nosso método: quanto maior o grau de complexidade bruta das imagens e sons, mais sutil a interpretação correspondente e maior o grau interior de consciência do expectador - e nenhum deles pode ser reduzido aos outros. Isto significa que os usuários têm a liberdade de executar, modificar e repassar imagens e sons sem permissão do suposto autor da obra (nesse caso o facilitador), estes que já nem reivindicam esse lugar, salvo nas galerias e museus de arte onde é preciso dizer-se autor para ser escolhido, para entrar em seus salões, justo porque queremos invadir todos os lugares. Mas para nós o que importa é que sejamos simplesmente os impulsionadores dessa fruição; para que essas liberdades sejam mais reais, é preciso que elas sejam irrevogáveis. Outro princípio peculiar desse modelo de arte é o da conexão: qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo[...], colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estados de coisas. Por fim, queremos invadir o terreno da utopia do ser livre, abrindo um espaço para a virtualização do real, e não somente a sua atualização.
Nossa hipótese que se poderia desenvolver é de que o objeto do materialismo bruto deve compreender o "público" como co-autor da obra; tendo a cooperação, aquilo que chamamos de jogos sociais colaborativos como elemento primordial para a ação no campo da arte, esse em que as pessoas podem e devem questionar e alterar as regras do jogo por meio de uma força primária material, e donde a subordinação do espaço ao tempo defina uma nova tecnologia de transmissão, colocando em primeiro plano o problema do tempo e da virtualidade, e propondo um novo código para a arte contemporânea, diferentemente desta que toma o público controlado por um artista controlador de fluxos. Assim, parece-nos que é possível definir o público-criador como um modelo mais dinâmico e mais desterritorializado, o público sendo tomado efetivamente, como um evento. Um público-autor e autor que tende a transformar-se em público e nele parece se realizar.

Ainda é possível dizer que a pluralidade dos fluxos e das formas de semiotização (a-individual e a-significante) tornam o espetáculo do materialismo bruto difuso, e geram outras formas de criatividade; um novo plano de imanência feito de intensidades, de movimentos, de fluxos a-significantes, fazendo dessa operação um prosseguir indefinidamente, uma espécie de memória em construção que fortalece e enriquece a percepção coletiva. Qualquer arte pressupõe regras que são estabelecidas como as fundações que inicialmente permitem um produto ser representado como possível. De modo que chegamos a dizer que não existe arte contemporânea individual. Toda arte na contemporaneidade é o produto de um agenciamento maquínico num capitalismo mundial integrado. Ela deve se apresentar como um agenciamento coletivo, como um objeto inconcluso, sem forma definitiva, quase infinitamente manipulável, incorporando o movimento e a permutação como elementos estruturais. Além do que, têm na sua mecânica combinatória, apenas campos de acontecimentos, constelações móveis que se renovam continuamente; levando a crer que se a arte é necessária, é ainda mais necessário ultrapassar as barreiras para um melhor entendimento da arte.

Resumindo, a arte contemporânea em nossa opinião, deve ser expressa através de objetos materiais (eventualmente sonoros), através de uma realidade bruta; e deve ser totalmente inventada ou reinventada por cada criador-observador que atravesse o seu terreno; deve permitir uma certa liberdade dentro das regras informais impostas pelo material e pela ação do artista-observador; deve ter contextos temporais-espaciais ligados à criação maleável; deve ser totalmente dinâmica, e deve ter o elemento de imprevisibilidade como constitutivo daquilo que, por hora resolvemos conceituar como: MATERIALISMO BRUTO.

Seja uma prática de instalação sensorial, ou uma sensação de teoria, para nós materialismo bruto é um projeto de desobediência narrativa; um projeto de livre circulação de imagens e sons; é um compartilhar incessante de afetos coletivos, abrindo uma possibilidade de utilização diferente das coisas e dos espaços da arte contemporânea. Trata-se de uma livre circulação de materiais videográficos que em seu agenciamento "geo-autonômo" proporcionará um nomadismo social, e quem sabe aonde poderemos chegar? Arte contemporânea: presença pela materia, representação, significação e presentação. De que modo podemos sair desse triunvirato? Ou pelo menos contribuir para a sua destruição? Talvez criando um efeito ilusório, afirmando a ausência do autor da coisa representada, como se não houvesse alguém por trás da produção das obras; talvez colocando em prática a idéia de que a matéria bruta deva se afirmar no decorrer do espaço-tempo de sua existência, em detrimento da representação de seus objetos por uma prévia edição...aí certamente teremos como conseqüência brutal desses materiais que serão apresentados numa maior aproximação da arte com a realidade. O que mais materialismo bruto?


Por Fábio Rocha